Jogo de xadrez

Problemas na colocação de recém-especialistas em zonas carenciadas: incompetência ou má-fé?

A discrepância entre a identificação do número de médicos que faltam em zonas carenciadas e as vagas colocadas a concurso não é um problema novo. Ainda assim, esta situação é particularmente grave tendo em conta a difícil conjuntura do país devido à pandemia de COVID-19 e a necessidade urgente de reforçar o SNS. Continuar a ignorar as necessidades já identificadas, limitando a fixação de jovens médicos nestas áreas, apenas contribuirá para o previsível insucesso dos concursos.

Antes da abertura do concursos (avisos n.º 12330-A e 12330-B), foram identificados, através dos despachos n.º 5039-A/2021 e 5696/2021, os serviços e especialidades carenciadas em diversos pontos do território nacional. A estas vagas carenciadas corresponde um conjunto de incentivos pecuniários e não pecuniários com vista à fixação de jovens médicos.

O problema na identificação e atribuição de vagas carenciadas tem quatro vertentes:

  1. Vagas identificadas como carenciadas acabam por não constar do mapa de vagas do concurso;
  2. Zonas e especialidades claramente carenciadas não constam do despacho do Secretário de Estado da Saúde (SES);
  3. Falta de transparência no processo de identificação e colocação a concurso de vagas carenciadas;
  4. Ausência de uma verdadeira planificação das necessidades do SNS.

Analisando em separado estas questões:

1) Vagas identificadas como carenciadas acabaram por não constar do mapa de vagas do concurso

O SMZS realizou uma análise detalhada do mapa de vagas do atual concurso para a colocação de médicos recém especialistas. Apresentamos alguns exemplos:

  • Na Unidade Local de Saúde do Litoral Alentejano não foram abertas vagas em seis especialidades previamente identificadas como carenciadas: Cardiologia, Gastroenterologia, Medicina Física e Reabilitação, Neurologia, Otorrinolaringologia, Urologia;
  • No Centro Hospitalar Barreiro-Montijo não foram abertas vagas em três especialidades previamente identificadas como carenciadas: Anatomia Patológica, Gastroenterologia, Radiologia.

 

2) Zonas e especialidades claramente carenciadas não constam do despacho do SES

Além disso, existem casos chocantes de boicote ao reforço de algumas especialidades em regiões claramente carenciadas.

Vejamos, por exemplo, uma situação relativa à especialidade de Psiquiatria:

  • Previamente à abertura do concurso, foi feito o levantamento de necessidades pelos diretores de serviço, pelos coordenadores regionais de saúde mental e pelo Programa Nacional de Saúde Mental, este último desenvolvido pela Direção-Geral da Saúde (DGS);
  • Ao contrário do que constava do levantamento, regiões profundamente carenciadas não constaram como tal em despacho, abrindo vagas não carenciadas e, assim, limitando o acesso a medidas de incentivo a fixação de médicos. É o caso do distrito de Portalegre que, possuindo um rácio de 1,8 psiquiatras/100 mil habitantes (a média nacional é de 7,8), foi simplesmente negligenciado e ignorado;
  • Pelo contrário um hospital localizado na região litoral do distrito de Coimbra (o distrito com o maior número de psiquiatras por habitante do país – rácio de 13,3 / 100 mil habitantes) foi contemplado com uma vaga carenciada.

Vejamos, agora, uma situação relativa à especialidade de Pediatria:

  • O Hospital Garcia de Orta encerrou o Serviço de Urgência Pediátrica durante o período noturno, após a saída de um grande número de especialistas do serviço. Apesar de sucessivas promessas do Conselho de Administração no sentido de criar condições para a fixação de Pediatras, este serviço não consta como carenciado, ao contrário do que ocorreu em 2020.

 

3) Falta de transparência no processo de identificação e colocação a concurso de vagas carenciadas

Simultaneamente, o processo de identificação de especialidades e vagas carenciadas carece de transparência e deveria ter em conta as recomendações dos programas nacionais de saúde da DGS, dos coordenadores regionais, as necessidades em saúde da população abrangida e o desfecho dos últimos concursos de colocação de recém especialistas. Contudo, não é invulgar ser maior o peso de interesses económicos privados, assim como a influência política de determinados intervenientes no processo.

Adicionalmente, verifica-se uma descoordenação entre o Ministério da Saúde e os organismos na sua dependência envolvidos neste processo: se o Ministério da Saúde propõe uma lista de locais e especialidades identificados como carenciados, de modo a permitir que a essas vagas seja associado um pacote de medidas de incentivo de fixação, por que razão tem a Administração Central dos Sistemas de Saúde (ACSS) uma atuação distinta? A justificação enviada pela ACSS para alguns candidatos referindo que a identificação de uma vaga carenciada não teria que conduzir necessariamente à abertura de uma vaga no concurso é a demonstração da forma autocrática e pouco transparente como é gerido este processo.

 

4) Ausência de planificação das necessidades do SNS

É necessário fazer uma planificação das necessidades por especialidade e região, tendo em conta a população, os serviços, especialistas e capacidades formativas instaladas. Porém, este levantamento não existe ou apenas foi feito de modo fragmentado, faltando um verdadeiro plano de organização de meios do SNS a curto e a médio prazo. Esta lacuna é grave, e contribui para a assimetria na distribuição de recursos e serviços em saúde.

Tudo isto leva o Sindicato dos Médicos da Zona Sul (SMZS) a considerar que existe um boicote à colocação de médicos no SNS. Se a situação já era conhecida, a incongruência é agora tal que não é possível ignorar o que parece ser a sabotagem de alocação de recursos adequados, impedindo a que os cidadãos tenham acesso a serviços de saúde de qualidade.

Apesar da propaganda do Governo, continua-se a negligenciar as regiões carenciadas e mantém-se a recusa em ouvir e negociar com os sindicatos médicos as propostas elaboradas sobre este assunto e que em muito poderiam contribuir para reforçar o SNS e diminuir a desigualdade na prestação de cuidados de saúde.

Fica apenas a dúvida: tratar-se-á de incompetência ou má-fé?

© Sindicato dos Médicos da Zona Sul